Um mês

Tenho ao mesmo tempo uma saúde de ferro e de isopor. De um lado, resfriados raramente me pegam e qualquer ferida cicatriza na velocidade da luz. Do outro lado, convivo com hidradenite, lipedema, psoríase, dismetria e algumas sequelas de uma fratura no fêmur não tratada na infância (tendinite no quadril e artrose são algumas das minhas companheiras rs). Minha sensação é que se eu parar, paro de vez. Como cresci sem validação para minhas dores e questões, aprendi muito cedo a engolir o choro e seguir em frente. Isso é uma benção e uma maldição: sem isso, eu não seria capaz de fazer tudo que já fiz até aqui, mas com isso tenho também dificuldade para entender o limite. Sempre me impressiono com quem valida as próprias dores e deixa de fazer as coisas por conta delas. Não me foi dada essa opção. Eu sorrio, aceno e sigo em frente. É péssimo e maravilhoso, tudo ao mesmo tempo. Me fez mais resiliente, mas me fez mais sem noção.

Com tudo, escolhi ignorar a realidade do meu corpo e fazer o que queria nos últimos anos. Uma escolha burra, sei bem. Andei de patins como quem tem as pernas iguais, fiz academia sem contar nada pra personal, corri como se pudesse. Terminei mais fudida do que comecei, com meses de intervalo entre as atividades e muitas vezes sem nem conseguir encostar o pé no chão. Uma animal. E então veio aquilo que me fez parar com tudo: morar em uma casa com um piso todo torto. Quem diria que seria isso, e não uma das minhas muitas lesões, que me faria parar e ser obrigada a reavaliar as coisas.

A yoga foi minha grande companheira nos últimos anos. Já tinha feito antes, mas de 2018 pra cá passei a levar a sério e ter uma prática diária. Até o piso torto. Se você já é torta e tem um piso torto, fazer yoga não vai dar certo. Descobri da pior maneira, me lesionando em uma aula simples. O resultado foi praticamente um ano inteiro sem fazer quase nada. Andar foi minha única atividade, e ainda assim saí de 10, 12, 14km por dia pra 3, 4, 5km no máximo. Um ano de quase sedentarismo depois de anos de atividade intensa. Minha saúde sofreu, meu quadril sofreu, meu joelho sofreu. A angústia foi tanta que resolvi correr, e na corrida consegui uma das lesões citadas anteriormente. Ir longe demais me tirou o pouco que eu tinha, e nem andar eu estava conseguindo. Some a isso a morte do único calçado que não me causava dor e pronto, uma espécie nova de sedentarismo tomou conta.

Mudei de casa, e aqui tenho o chão plano. Lisinho, retinho, como deve ser. E então tudo mudou: há um mês minha yoga matinal voltou a fazer parte da rotina. Com ela vieram as longas caminhadas e dias seguidos sem sentir dor. Só quem sente dor constante sabe a benção que é passar dias seguidos sem sentir nada. Sinto que a cada dia tudo vai entrando mais nos eixos. Sem dor eu consigo raciocinar com clareza, consigo sentir, consigo prestar atenção, consigo respirar. Consigo até respirar através da dor, quando ela vem, sem sentir que deveria fazer alguma coisa que não me cuidar e esperar ela passar.

Nem tudo são flores: yoga não é só exercício, sei bem. Bate em toda a minha sensibilidade. Move tudo, tira tudo do lugar. E esse primeiro mês foi também de muito choro, tristeza, confusão, pesadelos. Respiro através e tento chegar do outro lado. Depois de sentir dor por muito tempo, é difícil entender quem somos sem ela. É como se ela passasse a fazer parte do tecido que compõe o ser. Como se a gente não existisse de verdade sem a dor. Mas eu existo. Eu existo. Existo e tento aprender como me amar e me aceitar com tudo que sou. Tento aceitar o que a genética me deu, o que a vida me deu, o que fiz com isso tudo. Tento respirar e acreditar que se eu puxar o ar fundo o suficiente ele vai me ajudar a deixar tudo ir, vai me ajudar a jogar fora tudo que não sou, tudo que não preciso, toda expectativa. Enquanto esse dia não chega, sigo tentando.

Porque eu raspo a cabeça

Primeiramente, porque posso. Em segundo lugar, porque quero. Quero porque cansei do tratamento que recebia com o cabelo todo na cabeça, grande e farto, depois de anos de cabelos curtos. Cansei de ser tratada feito um pedaço de carne, e cansei também de ser tratada como menos do que um ser humano. Ter a cabeça raspada alimenta meu ódio e me faz relembrar todos os dias do estado podre e insensato da sociedade em que vivo. Me faz relembrar que nenhum avanço é real e muito menos garantido. São todos frutos do consumo, todos. A inclusão só existe quando vende, e assim que é possível acabar com ela, acabam. Em pleno 2023 e está pra sair um filme da Barbie. A Barbie, uma senhorinha de 63 anos que engoliu a autoestima de gerações e mais gerações de meninas. Raspo a cabeça porque me recuso a compactuar, e qualquer consequência que eu sofra por isso me lembra que liberdade de verdade só existe fora do considerado normal, fora do considerado feminino, enfim, à margem da sociedade de consumo.

Hoje no supermercado tomei uma porrada de um carrinho cheio de compras. A autora, uma sem noção, me mandou olhar por onde eu andava. Em qualquer outro tempo eu tomaria a porrada e automaticamente pediria desculpas. Hoje mandei ela pro inferno e xinguei de tudo quanto foi nome. Enquanto caminhava até o mercado, um grupo de crianças gritou desaforos que envolviam um “mulher careca”. Podres desde a infância, já absorvidos pelo senso comum e pela doente falta de respeito que acompanha a maior parte da população. Finjo que nem é comigo. Um atendente no posto de gasolina me chamou de Cássia Eller e riu, como se fosse uma piada ou uma espécie de xingamento. Ser comparada a uma das maiores e mais autênticas intérpretes da música nacional? Sim, obrigada.

Sinto que não vim pra me explicar, eu vim pra confundir, como diz a música. E nessa confusão muitas vezes me perco dos meus propósitos. É doloroso ser diferente. Não porque eu queria ser igual, Deusa me livre, mas porque eu queria que me deixassem em paz. Ser diferente aqui é como dar um passe livre para que façam e digam pra você o que quiserem. Vivo em um país doente, em um bairro doente, uma roça cafona em que as mulheres destroem sua vida e corpos parindo e tentando manter os machos de merda que arrumam. Uma existência triste, assim como as dos homens da região. Vira e mexe vejo carros parados pela minha rua, e se você passar do lado vai ver um macho bosta assistindo pornô e fugindo da família construída a base de (pretensa) normalidade que o espera em casa. Viva os cidadãos de bem! E eu que não bebo, não uso drogas e tenho consciência racial e de classe tenho que passar pelos absurdos que passo, vindos dessa gente insossa e surreal que se acha correta e normal. É normal tocar punheta escondido no carro enquanto crianças de 12-13 anos passam do lado? É normal olhar com desejo pra essas crianças, sr. Bolsominion? Creio que não. É por isso que parei faz tempo de defender qualquer solução que prometa resolver os problemas desse lugar medonho. Nem toda educação do mundo apagaria o que a moral religiosa e o pornô gravaram bem fundo na cabeça dessa gente. Se as crianças são medonhas, são apenas reflexos dos adultos que as cercam.

Outro dia fui tomar um sorvete e, enquanto uma das atendentes montava a casquinha, a outra dizia “eu sou homofóbica mesmo, tem algum problema? Sou obrigada a gostar de viado e sapatão? eu hein, sou bolsominio, sou homofóbica mesmo”. Hoje no supermercado um homem reclamou de pagar pela sacola, e depois que ele saiu a caixa bradou alguma coisa que terminava com “…e os viados. Falo pro meu pai que se ele fizer igual a esses velhos eu vou bater nele”. Homofobia e violência contra idosos na mesma frase, e não era uma brincadeira. Mas doente sou eu, por ter a cabeça raspada. Doente sou eu por andar confiante como sou e ignorar o considerado normal, mesmo me doendo de medo dessa gente por dentro. Doente sou eu por acreditar que o mundo se perdeu e que nada mais faz sentido. Como aguentar a realidade quando tudo chega a esse ponto?

Em resumo, se me perguntarem porque raspo a cabeça, a resposta é a seguinte: conforme vejo o cabelo caindo no chão, sinto um peso imenso ser tirado das minhas costas. Prefiro que me olhem como uma aberração. Em um mundo de gente suja, perturbada e que não respeita ninguém, prefiro ser freak do que ser fake. Eles que morram engasgados com o próprio veneno.

As luzes da cidade

Tudo parece mais bonito de longe. Tanto a distância quanto o tempo tem uma capacidade incrível de transformar qualquer coisa. Morei na cidade por alguns anos antes de perceber meu erro, e desde então moro em um bairro afastado que é quase uma cidade de interior. Quando cheguei aqui, estava feliz. Feliz por circular sem medo, por ter acesso a supermercados e por poder andar quilômetros sem correr perigo. A casa tem alguns problemas, mas eram tantos planos acumulados por tantos anos, que nada poderia nos impedir.

Mas impediu. Impediu e fez parecer que a resposta era largar tudo e voltar pra cidade. Eu esqueci do medo e da degradação. Esqueci o cheiro de bosta humana e a falta de manutenção dos prédios. Esqueci que era impossível sair a noite e que – como me disse hoje um corretor de imóveis – de noite a Cinelândia vira walking dead. Me fugiu da memória a taquicardia e o pavor. Me fugiu da memória o valor extorsivo das taxas condominiais, valor esse que raramente é convertido em qualquer melhoria nos edifícios: os prédios todos caem aos pedaços, com seus elevadores horrendos e portarias mal montadas, com suas infiltrações e falta de pintura. Já tive encomenda roubada pelos porteiros de um prédio em que morei na Lapa. Nesse mesmo prédio hoje em dia apartamentos são alugados por R$2.500, R$3.000. Ouvi hoje também que o aluguel de um apartamento em um prédio acabado em uma rua que cheira a merda chega a custar R$4.000 “por causa da vista”. Da vista? Você mora em um muquifo, mas tem foto bonita para postar na internet. Em tempos de vida de mentira, vale qualquer coisa.

O Rio morreu há muito tempo atrás. Queria ter percebido isso antes. Ele não existe para os cariocas. A cidade da qual sinto saudade não é aquela em que morei, mas sim a cidade que existia na minha adolescência e no início da minha vida adulta. Um Rio de Janeiro que não existe mais, mas que segue se vendendo como se existisse. Tudo é extorsivo, sujo e feio. As luzes da cidade atraem as piores moscas. Eu me recuso a gastar fortunas por uma vista. Me recuso a gastar pra todo dia ser confrontada com a degradação moral que tomou conta da cidade, uma cidade em que uma classe média odiosa compra e aluga imóveis que até outro dia eram moradia dos trabalhadores, que empurrados pela crise passaram a morar nas ruas ou nas favelas. Sou mais o meu quase interior. Sou mais as crianças correndo na rua e as luzes amarelas da rua, mesmo com todos os problemas. A resposta nunca é voltar atrás. A resposta é andar pra frente.

E qual é a frente para onde devo andar? Não sei. Só sei que ir até lá foi uma coisa terrível, mas mágica. Terrível porque estou até agora sem energia e sentindo uma tristeza funda, aguda, sem precedentes. Mágica porque eu finalmente me dei conta de que essa não é a resposta. Essa nunca foi a resposta. Eu não tenho estômago pra ignorar o sofrimento alheio e seguir meu dia. Não tenho estômago pra viver com medo. Não tenho estômado pra ceder ao capitalismo e torrar meu dinheiro suado em um imóvel horroroso só pra existir em um lugar que nada me oferece de volta.

Há alguns anos atrás escrevi uma canção que diz “o Rio é sonho ou pesadelo / depende de quem navega”. Hoje escreveria diferente. O Rio é pesadelo, independe de quem navega. A cidade se alimenta da pureza e do amor dos nossos corações até que não sobre nada. Há quem se perca no álcool, há quem se perca nas drogas, há quem desista e vá embora sem olhar pra trás. Sigo amando o Rio do meu coração, mas não tenho nenhum interesse pelo Rio da realidade. Eu naveguei no sonho enquanto deu, e vi a cidade ser vendida a preço de banana. Vi os lugares que eu amava serem engolidos pelas redes, pelos ricos, pelo hype. Vi as coisas serem sugadas até a raiz e depois abandonadas como se nunca tivessem existido. Talvez venha daí minha tristeza. Mas vai ver toda geração acha que o Rio do seu tempo era melhor. A diferença entre as gerações anteriores e a minha é que eu realmente tenho certeza: qualquer coisa que veio antes era melhor do que o que existe agora.

E no final, quem vive de passado é museu. Qual será a próxima parada?

Como estudar yoga sem gastar (muito) dinheiro

Vivemos em um mundo que transformou toda e qualquer coisa em produto. Nesse sonho molhado do capitalismo, certas profissões e caminhos se tornam cada vez mais difíceis. Cargos e profissões que não dependiam de diploma até outro dia veem os requisitos aumentarem e aumentarem, mesmo quando a formação é virtualmente inútil para o trabalho exercido (conhecimento é sempre uma coisa maravilhosa, mas conhecimento acadêmico não é necessário para a maior parte das profissões).

Com o advento do EAD, era de se esperar que a educação ficasse mais barata, que mais portas fossem abertas e novas oportunidades surgissem. Não foi o que aconteceu. Dependendo do que você quer estudar, o modelo online é tão ou mais caro do que o presencial, mesmo quando não envolve aulas ao vivo ou quando o conteúdo foi gravado há muitos anos atrás. É o caso da yoga. Uma formação há 3 anos atrás custava entre R$ 2.000 e R$ 4000. Hoje uma escola online cobra entre R$ 5.000 e R$ 8.000, sem aulas ao vivo, sem espaço físico e sem muita preocupação com o estado em que o aluno sai do outro lado.

Esse nível de investimento não é possível para a maioria de nós mortais, e mesmo querendo muito ou sonhando alto, muitos morrerão na praia sem conseguir alcançar o tão sonhado certificado. Para quem mora nos grandes centros é ainda pior: o aluguel não para de subir e a margem para investimento em estudos sem retorno financeiro imediato é cada vez menor. Se por um lado é possível completar uma graduação pagando R$ 50 por mês, se formar e exercer profissões como instrutor de yoga ou de meditação se torna cada vez mais caro, difícil e inalcançável para quem não nasceu em berço de ouro.

Para tentar reduzir esse gap, resolvi contar meu caminho e as práticas e pesquisas que me levaram a conseguir uma certificação acreditada pela Yoga Alliance International por menos de R$ 50. Sim, menos do que uma mensalidade em um EAD ruim em um curso sem propósito! É hora de virar o jogo, minha gente, e assim conseguiremos construir um futuro de yoga menos excludente. Um futuro em que as pessoas não relacionam “professor(a) de yoga” a uma pessoa branca, magra, sem noção e das classes altas. Vamos lá:

1 – Estude a filosofia com materiais gratuitos

Uma das belezas da internet é a abundância de e-books, livros, vídeos e textos sobre praticamente qualquer assunto. Com yoga não é diferente. Os livros que são a base da filosofia são milenares, então é possível encontrar versões em PDF gratuito sem ferir ninguém: não existe direito autoral válido para obras de tanto tempo atrás, e o texto puro é encontrado em versões disponibilizadas gratuitamente. No youtube é possível encontrar canais de professores sérios e dedicados, além de vídeos legendados de grandes gurus.

Leve seus estudos a sério: escolha um tópico de cada vez, pesquise com calma e cuidado, faça anotações e aproveite as jornadas gratuitas de diferentes canais para tirar dúvidas e fazer perguntas. Mesmo os instrutores dos cursos caros não costumam ver problema em responder dúvidas de não-alunos. Por trás da fachada capitalista, ninguém se envolve com yoga sem amor à prática e entendimento sobre a importância do serviço altruísta!

2 – Vasculhe sebos e bibliotecas de bairro

O hype contemporâneo não é o primeiro hype de yoga na história do ocidente. Nos anos 60 e nos anos 80 yoga também estava em alta, e com isso um sem fim de publicações foram lançadas. Vasculhando sebos, feiras de livros e bibliotecas de bairro é possível encontrar livros excelentes e importantes por um valor muito menor do que os absurdos praticados na internet. Meu Bhagavad Gita, por exemplo, custou R$ 10.

Se for procurar online, cheque sites como a Estante virtual e o Enjoei. Comprei meu Os Yoga Sutras de Patanjali por menos de R$ 40, já contando o frete. Também é possível encontrar PDFs, mas com o tempo você vai perceber que é bom ter o material para fazer anotações e consultar. Se seu bairro conta com impressão barata, essa também é uma opção (onde eu moro isso não existe haha).

3 – Pratique com a ajuda do youtube

Os Asanas são a menor parte da prática, diferente do que nos levam a crer. Dos 195/196 Sutras, somente 3 citam os Asanas. Meditação e Pranayama (exercícios de respiração) são muito importantes e devem ser realizados todos os dias, assim como sua prática de Asana, para que se alcance o verdadeiro entendimento e propósito da yoga. No youtube é possível encontrar guias bastante completos e maravilhosos de todas essas práticas, incluindo meditações guiadas. Use a internet a seu favor e não espere ter dinheiro para frequentar um estúdio!

Comecei a praticar yoga ao vivo, trocando meus serviços de web designer por alguns meses de aula. Depois disso, passei a praticar com o youtube. São anos de prática a essa altura, com muita atenção e cuidado com a minha integridade física! Nos primeiros dois anos eu não tinha nem um tapete, praticava diretamente no chão. Se você está disposta, tudo é possível! Não é sobre ter o tapete perfeito ou frequentar um estúdio bonito: é sobre fazer o melhor possível com a condição que você tem agora!

Você não precisa de muito espaço, você só precisa de disciplina, amor no coração e muita vontade de aprender e melhorar enquanto ser humano. Acredite, tudo é possível com disposição! ♥

4 – Ouça seu corpo

Yoga não é virar de cabeça para baixo. Não é se sustentar em uma mão só. Se um Asana é desconfortável ou exige mais do que seu corpo é capaz naquele momento, essa não é a hora para incluí-lo na sua prática. Se você não consegue respirar através da postura, isso pode te fazer mais mal do que bem, gerar lesões e comprometer sua caminhada. Ouça seu corpo, respeite seus limites, aprenda a olhar com mais carinho para si mesma e a caminhar com os pés firmes no chão.

Essa é uma das essências da yoga, inclusive: o autoconhecimento, a introspecção, a capacidade de se manter firme e estável mesmo quando tudo ao redor é caos.

Isso é muito importante especialmente para quem aprende e estuda sozinha! Certas posturas podem gerar lesões graves, então vale aquela boa e velha máxima: menos é mais.

Existem mestres que nunca fizeram uma parada de mão. Existem mestras que usam cadeira de rodas. Tudo é yoga, porque ela é uma coisa muito mais profunda! É como eu disse no tópico anterior: Asanas são uma pequena parte de uma filosofia muito vasta!

5 – E a formação?

Passei anos estudando por conta própria até encontrar uma formação que coube no meu orçamento. Me recusei a juntar dinheiro e dar milhares de reais suados para patricinhas da classe média ou caras sem noção que se acham o guru dos gurus. Me recusei também a dar fortunas para cursos online, uma vez que tudo é gravado de uma vez e – por mais trabalho envolvido – não faz sentido cobrar uma fortuna por isso. Não compre gato por lebre e não caia nos golpes dos falsos gurus.

Desde a pandemia, a Yoga Alliance (uma das maiores instituições de acreditação em yoga do mundo) permite cursos online, e com isso aconteceu um boom na oferta. Mesmo com o vasto número de opções, tudo ficou cada vez mais caro. Eis que descobri o curso de 200h da Bodsphere, uma empresa formada pelo casal de mestres mais incrível: Samarthya & Preetika.

Um curso completo por menos de R$ 50: Udemy + Bodsphere

Com o intuito de espalhar a verdadeira filosofia da yoga a preços realmente acessíveis, eles cadastraram um curso de 200h no Udemy, um curso acreditado pela Yoga Alliance, o que significa que após a conclusão você pode se cadastrar como instrutor na instituição (lembrando: a YA é mundialmente reconhecida ♥). Eles também oferecem cursos de Yoga Nidra, Yin Yoga e Pranayama, que contam como horas complementares na Yoga Alliance e enriquecem ainda mais a formação.

Enche meu coração de alegria saber que existe gente no mundo que realmente quer espalhar a yoga, que realmente acredita no seu potencial transformador e que entende que nem todo mundo tem condições de arcar com os altos custos de uma formação!

O curso é muito completo, aborda tópicos bastante complexos, tem uma porção de ebooks e recursos, reuniões abertas aos alunos no zoom e uma lista de leitura recomendada sensacional. Vale muito a pena! O preço regular é R$ 149,90 cada metade, mas ficando de olho no Udemy você consegue descontos e promoções e cada metade chega a R$ 22,90!

Infelizmente, por hora o curso só existe em inglês (com legendas em inglês), mas depois de completar minha formação (estou na metade :D), pretendo me disponibilizar para traduzir as legendas para o português. Espero que eles aceitem, assim ainda mais pessoas no Brasil terão essa oportunidade! <3

Curso de Redução de Stress Baseada em Mindfulness – 100% gratuito e com certificação

Vou começar citando o que diz o site:

Este curso online de MBSR (Mindfulness-Based Stress Reduction) é 100% gratuito, criado por um instrutor MBSR certificado, e é baseado no programa fundado por Jon Kabat-Zinn na Faculdade de Medicina da Universidade de Massachussetts.

Essa galera estuda os efeitos da meditação e do mindfulness no corpo desde os anos 80! O curso é incrível, cheio de recursos, práticas guiadas e explicações aprofundadas sobre cada um dos tópicos. Eles também tem reuniões no Zoom, para tornar o estudo menos solitário e permitir que os estudantes façam perguntas e comentem sobre a prática e os efeitos sentidos na vida.

Como existe gente abençoada e disposta no mundo, ele está disponível em inglês, português (BR), espanhol, russo e chinês! Comecei recentemente e estou apaixonada pelos materiais. Depois de lecionar ao vivo por muitos anos, Dave Potter percebeu que muitos estudantes ficavam de fora, seja por razões financeiras ou logísticas, e resolveu tornar o ensino do mindfulness sua missão de vida. Incrível, n´é? Conhecimento nenhum tem valor se não passamos adiante!

Além desses dois cursos, que servem de base para você avançar na sua prática e quem sabe se tornar também professora, é possível encontrar no Udemy outros cursos acreditados sobre temas relacionados, também na faixa dos R$22-27. Com disciplina, boa vontade e coração aberto, é possível chutar o balde do capitalismo e tirar da yoga a carga de classe média e hype que o ocidente jogou em cima dela!

Se tiverem qualquer dúvida ou quiserem conversar, comentem abaixo ou enviem um email para dandara.bayer@gmail.com. Vou amar conversar contigo! ♥

Quando menos quero, é quando mais preciso

Todo mundo experimenta dias de preguiça e uma vontade enorme de deixar a prática de lado. Para mim, esses dias acontecem quando me sinto muito estressada, quando a mente nubla e sinto que nada vai me ajudar e, especialmente, quanto tudo que eu queria era desaparecer do mundo sem deixar rastros. Luto com a depressão e a melancolia desde criança, e já perdi algumas vezes para ela: houve um tempo em que passava a maior parte do meu tempo deitada na cama, sem energia mesmo para as coisas mais básicas. Como nasci pobre, juntava minha pouca energia para trabalhar e deixava todo o restante ruir. Já passei semanas sem tomar banho. Já passei semanas sem escovar os dentes. Já fiquei com o cabelo tão sujo que as feridas sangravam, coçavam e doíam. Às vezes nem acredito que saí desse estado, e creio menos ainda que saí dele sozinha.

Nesses dias, em que tudo é um tanto cinza e dá vontade de desistir, tenho experimentado reforçar a prática ao invés de evitá-la, e quando tudo termina percebo o óbvio que a falta de humildade não nos deixa crer: quando menos temos vontade, é quando mais precisamos. Não vale somente para a yoga ou meditação, vale para tudo, do banho ao exercício físico, a comida saudável, tudo. É muito difícil acreditar nisso do auge do sofrimento, mas existe uma coisa muito poderosa, muito forte, muito maior do que levar em consideração a vontade ou a falta dela: disciplina.

Disciplina, diferente do que nos leva a crer a cultura capitalista ocidental, não tem a ver com força de vontade. A vontade não tem nada a ver com isso. É aquele clichê de não fazer porque quer, mas sim porque precisa. Precisamos de higiene, alimentação, carinho e cuidado com nosso corpo. Precisamos mesmo quando não gostamos dele e/ou quando não queremos. Precisamos mesmo quando todo o restante parece ruir. Disciplina é sobre fazer o que se tem que fazer sem deixar a vontade – ou a falta dela – tomar conta.

É muito difícil entender e alcançar a disciplina vivendo na sociedade que vivemos, mas faz algum tempo descobri uma forma muito poderosa de fazer a disciplina acontecer: encaro todas as atividades como encaro o trabalho. Somos educadas desde pequenas para colocar o trabalho acima de tudo. Estudamos para conseguir ou melhorar o trabalho, e sem o trabalho não conseguimos morar, comer, beber, existir. Não é sobre perder o prazer das atividades, mas sobre encontrar uma forma de realizá-las mesmo nos piores dias. Mesmo quem sofre com depressão – especialmente se não for rico rs – segue trabalhando. Somente em estados muito graves e avançados esse ímpeto se perde. De maneira geral, a capacidade de trabalhar é a última a se perder, justamente pelo lugar e importância que aprendemos a dar a ele desde a infância. Uma das primeiras coisas que me lembro são adultos perguntando o que eu queria ser quando crescesse, e esse “ser” nada tinha a ver com personalidade ou paixões, mas sim com profissões. Quis ser uma porção de coisas, e no final não me tornei nenhuma delas, mas desde pequena vivia com a angústia e o questionamento sobre qual seria meu caminho profissional.

Quando enxergo o banho, a yoga, a meditação e mesmo os prazeres da vida como enxergo o trabalho: atividades imprescindíveis para a continuidade da minha existência, consigo tirar de tudo o peso da vontade. Da mesma forma, tirando o peso da vontade consigo abrir mão de extravagâncias e lutar contra meus vícios (alô tabaco, estou falando com você). Tirar o peso da vontade é encontrar o caminho para a disciplina, e tudo fica melhor ainda se matamos também a pretensão de ir do zero ao cem. Jesus transformou água em vinho, mas esse tipo de milagre não tem espaço no cotidiano do trabalhador da cidade! haha Se vamos do zero ao cem perdemos a chance de apreciar o caminho e entender nossos próprios processos. Com uma mudança de cada vez, as coisas tem a chance de – com o tempo e a disciplina – se tornarem definitivas.

Com essa mentalidade menos focada na vontade, consegui diminuir o consumo de cigarros de 40/dia – sim, dois maços inteiros! – para 5-6/dia. É o ideal? Não, o ideal é parar completamente, mas que valor teria acreditar que minha vontade de parar seria suficiente? Um viciado é um viciado, e prefiro desenvolver aos poucos a disciplina até me sentir capaz de parar completamente.

No final, disciplina é a capacidade de passar por cima da vontade ou da falta dela. É a capacidade de respirar fundo e entrar no automático quando falta o ímpeto. Prefiro construir uma vida de disciplina do que continuar acreditando na falácia capitalista da força de vontade! Na força de vontade me sentia fraca. Na disciplina me sinto capaz de tudo!

Não deixe o sistema vencer

Quando o sistema ganha, nós perdemos. Perdemos porque nos desconectamos da nossa essência, porque aprendemos a nos odiar, porque cedemos nosso corpo e sanidade. Perdemos porque passamos a acreditar que a felicidade e o prazer estão do lado de fora, e que existe sempre mais alguma coisa a ser ganha ou alcançada. No capitalismo nada parece ser suficiente, e se vivemos cercadas de outros perdidos e perdidas, a tendência é que tudo siga espiralando até o fundo do poço. Mas não se assuste, companheira: o caminho é recheado de altos e baixos, mas sempre existe saída. Não é preciso esperar pelo trampolim no fundo do poço, é possível se desvencilhar e nadar de volta à superfície sem antes se perder completamente. Eu me perdi para que você não se perca, e saí viva para contar a história.

Muito cedo sabia que não fui feita para o esquema 8h-18h dos empregos tradicionais. Não via sentido em perder meu dia inteiro presa em uma loja ou escritório enquanto o tempo passava do lado de fora, uma vez que os salários oferecidos me pareciam baixos demais para o nível de desgaste. Entenda: meu problema nunca foi trabalhar. Eu amo trabalhar! Amo perder a noção do tempo por estar profundamente concentrada em alguma atividade. Em tudo que fiz, fui muito bem. Era uma boa vendedora de loja, uma boa atendente, sou uma excelente designer e até na programação me arrisco (front end, seu lindo <3). Nunca fui de fazer corpo mole, e quando muito sou a pessoa criando mais trabalho e pensando formas de melhorar o que é feito (amo sistemas, fórmulas e métodos). Acontece que em quase todo emprego que tive, em algum ponto minha mente fervilhante me fazia perguntar: pra quê? Para quem? Por que eu faço isso? Sempre pensei que preferia viver zanzando por aí a mercê da caridade alheia do que vender barato minha força de trabalho.

Com isso, demorei uma década para encontrar um esquema de trabalho que fizesse sentido pra mim. Comi o pão que o diabo amassou, passei fome e privação, tive luz e água cortada, mas não quebrei até ter um emprego que me pagasse um valor que considero justo. E o que aconteceu quando cheguei lá?

Tudo ruiu. Eu morri por dentro.

Depois de 6 anos trabalhando no mesmo lugar, exerço minhas funções com o pé nas costas. Nada me parece difícil ou desafiador. Já não era difícil ou desafiador no ano 2, que dirá no ano 6! Mas o dinheiro – que não se enganem, não é uma fortuna – me fez ficar preguiçosa, perder a criatividade e me desconectar de mim e dos meus propósitos.

Se antes eu cortava meu próprio cabelo, comprava em brechós e sebos, costurava e inventava de tudo com muito pouco recurso, agora eu tinha condições de pagar por um corte, visitar uma loja ou comprar um livro na livraria na hora que eu quisesse (benefícios de não ser tão engolida pelo sistema: não uso cosméticos, não frequento restaurantes, troco de celular somente quando ele quebra e não tenho gastos grandiosos). O problema é que com o tempo fui me acomodando nesses benefícios e me tornando incapaz do tipo de pensamento que tinha antes, um pensamento que ia pensar toda solução possível antes de gastar dinheiro.

É muito comum que, conforme a renda cresça, cresçam os gastos. Mesmo sem ganhar uma fortuna, deixei meus gastos crescerem. Passei a consumir mais industrializados, comprei um celular (normalmente usava os de segunda mão quando algum amigo comprava um novo), passei a comer sobremesa (já mal comia açúcar) e – quando ainda bebia – gastava um bom dinheiro com drinks e cerveja no final de semana.

Sei que minhas extravagâncias ainda estão bem distantes dos gastos da pessoa média, mas para mim – que era acostumada a viver de troca e coisas muito baratas – esse tipo de gasto me dá vergonha. Mesmo cedendo pouco, cedi. Mesmo que para maioria das pessoas eu ainda viva uma vida de gastos comedidos, só consigo pensar em quanto dinheiro joguei fora. Acredito que pagar pelo que podemos fazer é jogar dinheiro fora, assim como qualquer luxo (por menor que ele seja).

Quanto mais eu gastava, mais triste ficava, mais consumida pela culpa e pelo sentimento de despertencimento e desconexão da realidade prática e da minha essência. Tive ansiedade e depressão como nunca antes, e comecei a perder o sono e a vontade de existir. Tudo parecia difícil e distante, um sofrimento imenso, uma coisa desproporcional.

O sistema cria em nós uma preguiça que vai crescendo e crescendo e consumindo nossa capacidade de olhar além do nosso umbigo. É assim que surgem os viciados em compras, os comedores compulsivos e os perdidos na noite. É assim que qualquer vício vai tomando conta, quando existe uma desconexão entre nossa essência e a forma que vivemos a vida. Olho hoje e consigo não mais sentir culpa ou tristeza, mas uma raiva muito imensa do sistema e um desejo muito fundo de ajudar outras pessoas a despertarem: você precisa de muito pouco para continuar viva, e ceder ao sistema é antecipar nossa morte. Gente feliz não precisa comprar, não precisa gastar, não precisa do delivery ou do celular caro. Gente feliz de verdade é feliz consigo mesma, sem precisar de estímulos externos que não aqueles que a natureza dá (e eu não estou falando de maconha, pessoa good vibe de araque). Aos poucos vou aprendendo a pensar 2, 3, 10 vezes antes de comprar alguma coisa. O sistema nos torna impulsivos, doentes, fracos e sem coragem para promover verdadeiras mudanças, só pra depois jogar a culpa na nossa suposta falta de força de vontade.

E quando você joga a culpa nele, o que ele faz? Te responde que você fez porque quis. Você escolheu abraçar o sistema. E sabe o pior? É verdade mesmo, e por isso tanta gente segue nele mesmo sabendo e sentindo que nada dá certo: é mais fácil ceder e aceitar do que lidar com as próprias culpas. Não é mais fácil, aliás, mas realmente parece. Porque o estímulo do sistema é imediato se você tiver dinheiro para pagar por ele (o lanche, o streaming, a festa…), mas o estímulo que vem de rejeitar o sistema e construir novas formas de viver é lento, demorado e por muitas vezes penoso. Por isso tanta gente precisa do trampolim no fundo do poço, porque quando chegamos nele somos rejeitados pelo próprio sistema que nos levou até lá. É mais fácil levantar do fundo do poço porque quando chegamos lá já não temos mais nada, nos parece, somente os dedos julgadores apontados e a sensação profunda do fracasso. Quem nada tem, tudo pode, essa é a sensação. Que diferença faz parecer uma lunática se você perdeu tudo? As pessoas até batem palma e dizem admirar sua coragem, enquanto no fundo estão apenas assistindo sua vida como se fosse uma novela e aguardando sua derrota. Esse é o subproduto de um sistema doente e competitivo: gente que se faz e se sente melhor com a derrota do próximo. Quer saber quem é seu amigo? Seja muito feliz e autêntica, mesmo quando tudo der errado. Esse tipo de gente não aguenta e se afasta.

Mas e se você fizer diferente? É possível existir no sistema subvertendo a ordem. É possível trabalhar sem se destruir e investir na construção de si ao invés da construção de patrimônio, e isso acontece quando nos desapegamos do que não é necessário e encontramos diversão e paz no que não custa nada. Andar na rua ainda é gratuito. Zilhares de livros são jogados no lixo todos os dias. A comida anda cara, mas se você tirar a carne da jogada já fica bem mais em conta. Encontre em você a lógica ancestral que nos diz que tudo que não é necessário é luxo, e que todo luxo é perdição. O luxo nos afasta da essência. Encontre a alegria que existe por dentro.

Longe de mim acreditar que isso tudo seja fácil, mas sigo tentando. Já me livrei de muitas culpas e de muitos gastos, e sigo acreditando que todo mundo pode fazer melhor com seu tempo e dinheiro. Quanto você ganha por mês? Quanto disso é gasto com o que é realmente edificante, e quando é jogado fora em luxos vazios? Não ´precisa ser rico ou ganhar um super salário para se perder: o batom de R$1,99 ainda é luxo. A depilação que você faz em casa também é. A cerveja do final de semana, as roupas do calçadão, tudo é luxo. Você está pronta para largar o sistema e viver uma vida com propósito real?

Já me fiz muito essa pergunta, enquanto largava cada uma dessas coisas e outras mais. Hoje posso dizer com toda certeza: abandonar de vez o sistema é meu maior propósito. Olho para a vida e não consigo nem entender como foi que entrei nele, eu, que era uma revolucionária mirim e tinha ódio de corporação desde criança. Com tudo, sinto que precisava disso para entender como funcionam as pessoas e como o sistema nos engole. Me perder me ensinou a ter um pouco mais de humildade: estamos todos suscetíveis a essa desgraça, e basta um segundo de distração para uma vida inteira de revolta ir embora pelo ralo. Mas eu morri? Não. E nem você. Onde há vida há esperança! Então sigamos resistindo e existindo, já que o presente é tudo que temos. Deixe pra lá os socialistas de iphone e os julgadores de plantão, dê a mão a uma irmã e saia cantando: o futuro é brilhante para quem desperta do coma capitalista!

Autogentileza

Tenho problemas ortopédicos que me fizeram por muito tempo me sentir menos. Minha deficiência é sutil quando vista de fora, mas a dor que ela causa já me tirou o sono e me deu de presente muitas noites mal dormidas. Para completar, fui obesa por muito tempo, o que me fazia sentir ainda menos e motivava os exageros que cometi na tentativa de mostrar que era tão capaz quanto os outros. Do auge dos 140kg, sentar no chão de pernas cruzadas era uma atividade excruciante. Encostar os joelhos no chão? Garantia de que ficariam por dias ainda mais inchados e doloridos. A perna menor, que suportava a maior parte desse peso, sente até hoje as consequências de anos de negligência.

Não me culpo por isso. Cresci ouvindo que minhas dores não existiam. Sentia que talvez fosse dramática e que devia aguentar tudo, todo o tempo, e mostrar que de fato não era nada, mesmo sentindo a dor me consumir. Desse tempo até aqui perdi muito peso, fruto da prática de yoga, caminhada, trilhas e alimentação adequada. Não foi um esforço ou um sacrifício, tudo aconteceu naturalmente. O que nunca foi natural foi o desejo de provar para o mundo que eu era tão ou mais capaz. Desde a adolescência sei, por exemplo, que não posso correr. Ainda assim, lá estava eu correndo, e com isso consegui mais uma fratura, mais uma dor, mais tempo parada. Isso é o que ganhamos quando não respeitamos nosso corpo: uma quebra na rotina de exercícios (em todas as rotinas, na realidade) que nos faz ficar ainda piores. Sem a corrida nada disso teria acontecido, mas sem ela eu também nunca teria descoberto a razão de tanto sofrimento: uma fratura do fêmur que me aconteceu na infância e não teve o tratamento adequado. Ver o estado do osso do meu quadril na tomografia foi uma mistura de emoções. Não dava mais pra fugir do fato de que tenho uma deficiência, porque agora eu tinha a certeza que nunca tive. Ao mesmo tempo, morreu ali qualquer pretensa coragem de me desafiar. Quando se tem uma deficiência certas coisas não são desafios, são somente inconsequência. Uma coisa é fazer sem saber, outra coisa é fazer sabendo.

Cada vez que me lesiono porque não tive amor, compaixão e gentileza comigo mesma, passo meses sem conseguir me mover direito, e todo o meu esforço – de tempos, muitas vezes – vai por água abaixo. De que adianta se desafiar se você vai terminar sem conseguir andar? Exatamente, não adianta de nada. Isso não é desafio, é ódio por si. Quão longe eu estaria agora se não tivesse cismado em fazer coisas que eu sabia não poder, só para provar pro mundo que sou capaz? Eu não sou normal, nunca vou ser perfeita, não existe cirurgia ou tratamento que resolva meu problema, a não ser que inventem um transplante de perna que se torne popular durante meu tempo de vida. Recentemente me dei conta: eu sentiria tanta vontade de ser normal se vivesse em uma sociedade que respeita deficientes? Eu teria esse desejo se fosse aceita? Acredito muito que não.

Por muito tempo eu sentia uma vergonha imensa de me exercitar. Não tinha roupas adequadas, tinha vergonha de suar muito, tinha medo de me machucar, tinha emoções tão fortes que me impediam de respirar. Quando comecei na yoga, há muitos anos atrás, temia certos asanas não por qualquer questão física, mas porque mostrariam o estado deplorável da única calça que eu tinha, remendada à exaustão no meio das pernas. Sentia tanta ansiedade que não conseguia respirar, muito menos encontrar equilíbrio ou ritmo. Só consegui relaxar e realmente aproveitar a prática quando comecei a fazer tudo em casa. Para além da minha falta de roupas, me dava vergonha do corpo. Vergonha de como as gorduras do meu lipedema se penduravam em certas posturas. Vergonha da minha barriga, dos meus joelhos tortos, de tudo. Eu me odiava tão profundamente que não conseguia enxergar a realidade: todo o ódio que sentimos não vem de nós, vem da forma como a sociedade nos olha. Tem gente que vai internalizar isso e passar a vida se odiando. Eu, por sorte, consegui sair dessa. Ainda não encontrei o amor profundo por mim mesma, mas já não me desprezo completamente como antes. A dor me mostrou que sem autogentileza e autocuidado eu terminaria morrendo jovem, muito jovem, muito antes do que imaginava ou gostaria, e apesar do suicídio ter passado muitas vezes pela minha cabeça, sei que meu desejo era que a minha realidade desaparecesse, e não que eu morresse.

Com tudo, hoje quis escrever um pouco mais sobre essa camada da minha história, com o intuito de provocar alguns questionamentos e passar alguns pensamentos adiante: você pratica a gentileza consigo mesma? Você se exercita por amor ou por ódio? Você quer ser melhor dentro da forma na qual nasceu, ou seu desejo é alcançar o impossível? Você se odiaria se não tivesse sido ensinada a se odiar? Você consegue sequer enxergar que foi ensinada, ou ainda acredita que a tua falta de autoestima e de amor realmente saiu do seu coração?

A vida é muito curta e muito longa, tudo ao mesmo tempo. Quando se sente dor, uma noite é uma vida inteira. Mas se existe qualquer chance de acabar com a dor, precisamos agarrar essa chance com unhas e dentes, com carinho e compaixão, com força e tranquilidade. O exagero de hoje é a dor de amanhã, mas a paciência de hoje é o sucesso da semana que vem. Dane-se que eles conseguem fazer crossfit, subir parede ou levantar o próprio peso. Foda-se os bombados, os viciados em academia, os corredores. Importa nosso próprio corpo, nossa própria jornada, e ela não pode ser comparada a de mais ninguém. Hoje me maravilho por terminar um alongamento simples, porque a dois meses atrás eu mal conseguia andar até o banheiro. Me sinto orgulhosa de mim por conseguir encher meus pulmões de ar e por ter reduzido meu consumo de cigarros em 85%. Eu poderia me odiar e me sentir mal por não ser nesse momento capaz de fazer 14km de trilha – coisa que já fui – ou por ainda fumar cigarros, mas o que eu ganharia com isso? Apenas uma ansiedade e um ódio por mim que me fariam ir ainda mais devagar.

No final, se amar é mais importante do que qualquer desafio. Se respeitar é libertador, rebelde, revolucionário. E se o amor por si por difícil, comece pela gentileza. Se trate como trataria uma criança, com cuidado e com afeto. Você colocaria uma criança para se exaurir fazendo exercício físico? Se sim, procure ajuda psiquiátrica, porque você é louca. Que tal pegar esse ódio que aprendeu a sentir por si e transformar em ódio do sistema? Talvez assim chegue o dia em que ninguém precise passar pelo que passamos.

Por uma empatia mais realista

Empatia, uma coisa tão falada e tão pouco entendida pela maioria das pessoas. Cooptada pelo capitalismo, a empatia perdeu completamente qualquer sentido ou noção. O que é empatia pra você? Segundo a noção contemporânea, empatia é sair de si e se colocar no lugar do outro. É ouvir com atenção e sem julgamento, sem comparação, sem buscar na cabeça uma situação comparável, já que isso é simpatia e a simpatia é algo ruim.

Já caí nessa falácia. Ouvi absurdos enquanto me colocava no lugar do outro. Fui fundo nessa de abrir mão da minha própria racionalidade e ouvir sem julgar gente incapaz de ouvir os outros ou de pensar além do próprio umbigo. Gente que posta seus sofrimentos e só quer saber do sofrimento alheio para se sentir melhor, naquela base do “poderia ser pior, olha o que fulana passa”. Eu juntei forças nem sei de onde e ignorei a alienação gritante de patricinhas, playboys, narcissistas e sociopatas, tentando ser uma pessoa empática e atenciosa. Fico feliz por ter percebido a verdade: empatia sem realidade só serve para perpetuar o egocentrismo e o individualismo da sociedade contemporânea.

Ouvir sem julgamento é, além de impossível, inútil. Ninguém ganha nada quando sofrimentos vazios e inventados são validados, pelo contrário, perdemos todos. A psicologia capitalista segue validando também esses princípios, assim como as morais religiosas que nos dizem que não estamos aqui para julgar ninguém. Prefiro aquela máxima que diz que quem perdoa é Deus. Não estou aqui para ouvir sem julgar o que nem deveria ser dito. Não conseguir comprar o que quer não é sofrimento. Não ter dinheiro para as coisas da moda não é sofrimento. Assim como não existe sofrimento em ser viciado em comprar, nem em ver um negócio falir por incompetência e falta de noção, nem tomar tarja preta para aplacar o que não existiria não fosse a compactuação com o sistema. Essas coisas são a ilusão do sofrimento, e pela perspectiva da psicologia capitalista a pessoa deve validar o que sente, não se sentir mal por sentir e buscar formas de melhorar que ignoram completamente a realidade do restante da população.

O sofrimento ilusório que acho mais engraçado é esse do vício em compras. Vício em compras demanda dinheiro, ou ao menos crédito. Ter dinheiro e/ou crédito passa longe da maior parte da população. A classe média chora seus vícios vazios enquanto a população morre de fome ou negligência, e eu nem falo sobre as camadas mais marginalizadas. As pessoas batem palmas para o SUS sem nunca terem utilizado o sistema, ou quando muito após terem tomado vacina em um posto de saúde ou hospital de bairro nobre. Faça-me o favor. Pessoas esperam 11 anos na fila por uma cirurgia ortopédica enquanto patricinhas choram o vício em compras e o armário abarrotado de inutilidades e ainda se tornam influenciadoras com isso, validando a alienação de outras como elas. Devemos sim comparar os sofrimentos. Sem a comparação cedemos a falta de lógica, de noção, de sentido.

O empresário que vai à falência porque investiu em carros de luxo, viagens e jóias ao invés de reinvestir no negócio também não merece nenhuma pena ou empatia. Pessoas se sustentam a vida inteira vendendo água, salgados, bolos e mais um sem fim de quitutes e objetos. O cidadão começa com dinheiro, investimento, plano de negócios, vai à falência graças a própria incompetência e ganância e no final culpa o governo, Deus e o mundo por ser um merda. E o que ganha com isso? Outros merdas que batem palma. Empregados que se compadecem da dor do patrão. Vivi pra ver um mundo em que empregados choram não a perda iminente de seus empregos, mas o sofrimento ilusório do dono. Que mundo é esse? O pior é saber que a alienação é tão funda que o sonho de todo oprimido é mesmo se tornar o opressor, como disse Paulo Freire. Não vou nem citar a parte da educação libertadora, porque vivemos há gerações sem educação nenhuma, movidos por aprovações automáticas e professores frustrados (no mínimo). Não é que não tenhamos uma educação libertadora, não temos educação e ponto, em resumo.

Tinha um amigo que foi lentamente se viciando em tarja preta. Uma pessoa 100% dentro do padrão socialmente aceitável, com o emprego hype e as companhias duvidosas porém pertencentes às “classes certas”. Outra amiga teve alta da psiquiatra depois que começou a fumar maconha, e apesar de parecer um vegetal falava para quem quisesse ouvir o quanto a maconha tinha mudado sua vida. Lógico, saiu de vegetal a base de tarja preta pra vegetal a base do genocídio do povo preto! Como não ficar feliz? Eu mesma engoli por muito tempo a empatia individualista e o egocentrismo da sociedade, e comprava maconha enquanto pensava que nenhuma consequência era problema meu. Eu sofria, afinal, e em teoria era ela a responsável por aplacar minha ansiedade. Hoje, depois de algum tempo de sobriedade, vejo que me causava mais mal do que bem, como faz com todo maconheiro que usa a falácia do medicinal pra justificar o próprio vício. Porque sim, qualquer coisa vicia se você for perturbado o suficiente. E a perturbação não acaba com remédios ou maconha ou qualquer outra droga: ela acaba quando quebramos a lógica imposta e nos questionamos sobre a realidade. A ansiedade? Nunca mais tive uma taquicardia desde que confrontei meus próprios sentimentos e pensamentos e me libertei do que nunca foi meu, mas sim construção social. A sociedade é doente e ansiosa, eu não, e nem ninguém que escolha não compactuar com ela.

Esses amigos se perderam no caminho, e não sei do desenrolar de nenhuma das histórias. Só sei que em algum ponto não aguentei mais ficar calada e ouvir as baboseiras e a ilusão do sofrimento. Quando abria minha boca para questionar, era massacrada. Era eu a pessoa sem empatia e sem noção, questionando o sofrimento do próximo, ignorando que cada pessoa sabe onde o calo aperta. Mas sabe mesmo? Porque pra mim não existe sentido em reclamar do sapato apertando o calo com alguém que anda descalço. Não faz sentido reclamar do sapato apertando o calo com alguém que nunca teve um sapato na vida. Acreditar que cada um sabe onde o calo aperta ´´e compactuar com o egocentrismo, o individualismo e a psicologia capitalista, e eu me recuso a seguir fazendo isso.

No final, espero viver para ver um mundo em que a empatia real aconteça e se torne valorizada. Em que os indivíduos pensem duas vezes antes de bradar o próprio sofrimento, e na qual o véu da ilusão tenha caído e sobre somente a verdade. Não me considero a detendora da verdade, longe de mim, mas acredito que nos aproximamos dela quando saímos de nós mesmos e encaramos a vastidão da realidade prática. Uma empatia não realista é só lubrificante pro sistema. E ficar calado ouvindo absurdos não é empatia: é fraqueza de espírito e falta de coragem.

Agradecer e acreditar

É uma experiência insana ter uma doença ainda não compreendida pela ciência. Imagina ter duas? E três? Não sei o que fiz na minha existência passada para merecer, honestamente, e já chorei muito tentando entender porque isso tudo aconteceu comigo. Para além das doenças crônicas, tenho também sequelas de uma fratura não tratada na infância – lembranças de uma vida de negligência – e com isso oscilo entre estar bem e péssima, uma montanha russa de sensações e sentimentos que vez ou outra me tiram o sono.

Vez ou outra eu canso e peço às forças do universo que me levem embora. Não foram poucos os dias em que pensei em enfiar minha cabeça no forno e ligar o gás. É difícil e doloroso. Não desejo esse nível e constância de dor física para ninguém. Hoje acordei mais uma vez destruída, e chorei o suficiente para chegar nas realizações que escrevo abaixo. Podem parecer pouco, não sei, mas vai ver eram justamente o que eu precisava para sobreviver a mais um dia e com sorte me sentir vivendo.

Estou viva

É difícil agradecer por estar viva quando você sente dor física praticamente o tempo inteiro. Mas eu estou viva, afinal, e se não acreditar que existe uma razão para isso é melhor mesmo desistir. Estou viva e minha cabeça segue fervilhante e cheia de ideias. Estou viva e sou fisicamente incapaz de desistir. Consigo superar a dor e não me prostar. Estudo com dor, trabalho com dor, caminho com dor. A dor não vai embora, então aprendo todo dia a conviver com ela e não me deixar levar pela vontade de nem sair da cama de manhã. É terrível pensar, mas poderia ser pior. Sempre pode ser pior. Queria ter tido consciência disso antes de tudo chegar a esse ponto, assim teria aproveitado melhor os dias em que tudo que existia eram as consequências estéticas, os dias em que a dor constante ainda não tinha me alcançado. Talvez eu tivesse sido mais feliz e menos reclamona. E então respiro fundo e entendo: tudo pode ser pior amanhã. Talvez hoje seja uma benção. Talvez hoje seja o melhor dia de todos, e eu nunca vou ser capaz de sentir isso se não me abrir ao fato de que tudo pode piorar a qualquer momento e que o controle é uma ilusão.

A ciência não para

Apesar de profundamente ligada ao capitalismo, a ciência não para, e todos os dias novas descobertas são divulgadas. Vai ver em uma dessas descobrem a cura para alguma das minhas condições. Para além do olhar no futuro, existem também práticas e conhecimentos ancestrais que tem me ajudado a lidar melhor com tudo, como a ayurveda e a yoga. Existe sempre alguma coisa para experimentar, e onde há vida, há esperança.

Nada acontece da noite pro dia

Quando se tem doenças crônicas, é muito difícil lidar com a frustração que vem da demora no efeito de certos remédios, tratamentos e práticas. O sonho por dentro é que tudo melhorasse da noite pro dia. Mas você não melhora de anos de negligência e sofrimento em uma semana. Quanto mais natural a prática, mais tempo ela demanda para surtir qualquer efeito. A yoga, por exemplo, começa a mostrar resultados depois de aproximadamente três meses. Qualquer mudança na alimentação também depende de um período semelhante. É importante não deixar a frustração ser maior do que a noção, porque é aí que mora o perigo: nos desconectamos do objetivo e cedemos aos prazeres destrutivos, uma rebeldia contra o próprio corpo, uma pulsão de morte que só torna tudo ainda pior.

Eles também não podem

É difícil não olhar para as pessoas “””normais””” e sentir inveja: eles comem o que querem, fazem o que querem e parecem não sofrer nenhuma consequência. Só que a consequência vem. Ela sempre vem. A diferença entre nós, pacientes crônicos, e uma pessoa comum é que ela vai demorar muito mais tempo para sentir o impacto de suas escolhas. Dá para olhar isso como uma verdadeira bênção! Não posso destruir meu corpo nem se eu quiser! haha Quer coisa melhor do que isso? Um corpo a prova de autodestruição. Um corpo que muito rapidamente grita por socorro e não nos permite seguir comendo ou bebendo ou sendo qualquer coisa que piore nossa condição. Pensar assim tem me ajudado a lidar, e me faz sentir grata pelo corpo que tenho. No final das contas, eu posso odiar meu corpo o quanto eu quiser, ele vai continuar lutando para continuar vivo, e isso me dá forças para encontrar amor por ele. Forças para tratar ele melhor e acreditar que nada é sofrimento ou privação: da mesma forma que posso escolher o que me faz mal, posso escolher o que me faz bem, e isso não é se privar, isso é se cuidar.

Nada acontece por acaso

Preciso acreditar que existe uma razão para eu ter tido uma mãe tão negligente e egoísta. Preciso acreditar que existe uma razão para sofrer na vida adulta as consequências de um problema que era facilmente resolvível na infância. Prefiro acreditar que nada no universo acontece por acaso, que tudo tem uma razão, que sou muito pequena e o mundo é muito grande, e que não tenho nenhum controle sobre absolutamente nada. Dessa forma, consigo seguir tendo fé de que minha existência tem um propósito para além do meu sofrimento. Vai ver eu vim para aliviar o sofrimento de outras pessoas. Talvez um dia eu entenda o sentido, mas gosto de pensar que a força para seguir mora justamente na busca, e que mesmo que eu não entenda nada, sairei dessa vida sabendo que fiz o meu melhor. O que mais eu poderia querer além disso?

No final é como disse, sou incapaz de desistir. Existe uma pulga atrás da minha orelha que me impede de acreditar que esse é o final. Que me impede de aceitar o sofrimento, e me inspira a levantar e seguir tentando, seguir acreditando, seguir experimentando e sendo grata por quem sou e pelo que tenho. A gratidão não me vem naturalmente. É mais fácil me ver reclamando de tudo! haha Mas de vez em quando me cai essa ficha imensa de que a vida é uma só, e que o tempo que gasto reclamando do meu corpo ou da minha condição pode ser utilizado pesquisando e estudando, amando, pegando sol, escrevendo ou trabalhando em algo novo. Não sentir dor é um privilégio, mas se esse privilégio me é negado, me resta superar a dor e seguir fazendo mesmo com ela presente. É difícil sentir gratidão quando a dor se faz presente, mas é justamente nesse momento que ela é mais importante. Sem gratidão, fé e propósito, tudo desmorona. Ainda não estou pronta para desmoronar.

 

Ação

O primeiro site pago que eu fiz demorou quase um mês pra ficar pronto. Era simples, mas fofo, uma loja virtual para a marca de uma conhecida da época. Até então, minha experiência com desenvolvimento era quase nula. Mexia em HTML e CSS na adolescência, pra atualizar meus blogs, mas parava por aí. Ver as trocentas letrinhas e números miúdos dispostos no que parecia pra mim um rascunho do inferno chegava a dar dor de cabeça instantânea, e eu pensava que nunca nunca nunca mexeria com aquilo. Alguns anos depois já estava acostumada a colocar um site inteiro no ar em um dia.

É engraçado aprender as coisas por conta própria. Uma benção e uma maldição. Se por um lado ser entrona e ativa me possibilitou ter uma porção de experiências, me sustentar e aprender coisas novas todos os dias, por outro lado é um caminho extremamente solitário. As pessoas crescem acostumadas a serem ensinadas, guiadas, movidas. Ação é uma das coisas mas desvalorizadas no mundo: é preciso ser passivo, seguir ordens, não causar confusão. Criados em um sistema educacional que serve somente para nos preparar para o “””mercado de trabalho”””, somos conduzidos ano a ano à inação. A essa altura da vida, eu não tenho mais saco pra quem não se propõe a fazer as coisas de verdade. Ou você faz ou você não faz. Não existe meio termo, não existe nuance, ou você começa e vai seguindo ou você não começa e fica aí. Zero questões em qualquer das duas opções, mas, se você se propõe a viver fazendo, você precisa fazer.

Me vejo vira e mexe tomada pelo estresse e a ansiedade quando me percebo acumulando mais funções e responsabilidades do que deveria e, vivendo em um mundo de gente passiva, ser ativo é uma merda. Eu faço rápido, eu faço preciso, se eu não sei aprendo, se não encontrei pergunto. Não existe tempo pro medo de errar, só existe espaço pra aprender. Se eu não tivesse passado aquele quase um mês com enxaqueca e vontade de jogar o computador pela janela, mas voltando ao trabalho todo dia (na época cobrei o valor – irrisório pra um site – de R$ 600, dada a minha inexperiência), eu não colocaria um site no ar em um dia hoje. Eu me propus a deixar de sair, de me divertir, de uma porção de coisas, pra adquirir esse aprendizado. Depois do grosso desse tempo, o resto veio fluido e fácil ao longo dos anos, com alguns desafios pelo caminho pra não perder a graça. Mas eu me propus. Eu levantei e fiz. Eu não olhei todos os dias para o computador esperando que algum texto ou pessoa ou curso fosse me fazer aprender tudo que eu precisava pra entregar o site no prazo. Por mais tutoriais e menos aulas. Aula é chatice. Aula é conteúdo vazio massacrado em cima. O tutorial, o guia, não. Você pode terminar frustrado, encafifado, perdido, mas você termina sabendo mais do que quando entrou. O saber prático, real, não a vomitação vazia da academia. Eu prefiro levantar o prédio do que ler sobre ele. Prefiro que falem sobre mim do que ler sobre os outros. É preciso ego, autoestima, autoconfiança pra escolher o caminho da ação. Se eu tive essas coisas durante todo o tempo? Não, não mesmo. Nem de muito longe. Não tenho essas coisas em um modo forte e completo até hoje. Mas eu liguei a caralha do computador e trabalhei. Eu me propus, e quando eu me proponho, vou até o final.

Mas quem vai, né, quando pode não ir? Quando pode comprar o computador ou o instrumento ou a máquina ou a ferramenta cara depois de procurar por meses e meses ou talvez de estalo, dependendo da personalidade, e então fingir que vai fazer. Então ameaçar fazer. E quando um dom inato, enorme e mágico não acontece, você larga a coisa pra lá. Você deixa ela de lado e pensa que não era pra você ou que não era o momento, ao invés de enfiar o orgulho e o ego no cu e tentar até os dedos sangrarem. Tentar até dar certo. Tentar até você sentir que tentou até o seu último fio de cabelo. Tentar ao invés de fingir que tentou e se convencer disso. Ao invés de ignorar o fato de que somente a dedicação e a prática levam a algum lugar.

Não dá mais pra viver nesse mar de “tá tudo bem se não deu certo, você pode tentar de novo”, quando a tentativa é esse fingimento vazio. Sinto que o mundo caminha cada vez mais pra uma moleza, uma frouxidão nunca antes vista. Uma coisa assim que só é possível mesmo num mundo dominado por homens, os arautos da frouxidão. Tá pra andar pela terra algo mais capaz de tirar o corpo fora e fingir que fez as coisas do que homem (mas esse é assunto pra outro post).

Enfim, talvez eu já tenha até me perdido. Divagação sobre divagação e a gente acaba assim. Mas eu não sei, não aguento. Meu corpo é incapaz de aceitar desculpas, se eu podia ter dado as mesmas desculpas e não dei. Eu não tô falando de gente sem condições ou acesso ou privilégios. Eu tô falando de jovens da classe média com tudo e mais um pouco. Gente que tem e teve muito mais do que eu jamais sonhei na vida. Mas vai ver é isso. É o não ter que faz a gente ser sagaz e correr atrás até se exaurir. Daí vem o jovem da classe média e suas terapias e suas rebeldias e sua solidão querer me convencer de que eu preciso passar a mão na minha própria cabeça e me contentar, porque tem dias que são difíceis mesmo. Eu entendo, é real. Mas se todos os dias são difíceis e coisas que levariam poucos meses tomam anos da sua vida, talvez você esteja passando a mão demais na própria cabeça. Cuidado pra não engordurar o cabelo.