Não fuja pras montanhas

A figura do monge me entristece. Não vejo a grandeza da abdicação. Quando olho o monge, eu vejo alguém que por alguma razão escolheu se abster do convívio social, em muitos casos as custas do bem estar de outra (ou outras) pessoas. Pra cada homem muito velho e sábio e reconhecido e lembrado, tem uma mulher que se fudeu pelas atitudes dele. Uma mãe que pagava as contas e catava os cacos. Uma tia que dava mesada. Uma esposa que ficou pra trás com filhos e nenhuma renda. E se você entra nos que não fuderam ninguém, são só pessoas que não viveram, pura e simplesmente. Porque parece muito bonito e poético e romântico largar tudo e ir pras montanhas, mas a realidade é essa: abrir mão do autoconhecimento real – que só conseguimos no convívio e no diálogo com outros seres humanos – para uma suposta vida espiritualizada é basicamente não viver.

Mas isso não é meio radical?

Mais radical do que largar tudo e ir pras montanhas? Creio que não. Espero a essa altura que você entenda “as montanhas” como qualquer uma dessas buscas por espiritualidade que terminam no isolamento. Bônus se a motivação forem práticas orientais ancestrais. Mais bônus ainda se tiver a ver com a Índia. Você não vai se conhecer mais porque usa bata e raspou a cabeça. Você não vai se conhecer mais entoando um mantra por horas e horas e horas. Também não vai se conhecer mais deixando as pessoas pra trás.

Mas você se conhece em cada briga. Em cada vez que quis falar e não disse. Em cada percepção sobre o seu corpo e a sua cabeça. Você se conhece quando se joga sem medo. Quando erra e aceita que errou. Quando pede desculpa do fundo do coração. Quando se compromete a melhorar. Os mantras e batas e práticas podem até ajudar, mas ir de cabeça é se abster, e se abster é se alienar. A tão falada atenção plena tem que vir de dentro pra fora, e não o contrário. Quando você tem atenção em você, nos seus processos, no seu crescimento, de uma maneira gentil e não egoísta, o mundo ao seu redor começa a mudar. Não é balela, não tem fundo religioso, não precisa de isolamento. Se o autoconhecimento te leva ao isolamento e não ao compartilhamento, ele realmente contribui pro teu crescimento como pessoa? Ele realmente contribui pro mundo?

Qualquer pessoa que passar uma semana em um retiro – e eu tô falando dos brandos, sem nem mencionar coisas como silêncio absoluto rs – vai voltar renovada das ideias, leve, feliz. O problema é que as pessoas confundem as coisas: não foi o retiro em si, ou a filosofia do retiro que te fez bem. O que te fez bem foi sair da vida de bosta da cidade grande. Aí a pessoa volta e uma semana depois tá escaralhada de estresse de novo. Lógico. Ser tranquilo, pacífico, centrado e sábio quando tiramos todas essas camadas é muito fácil. Agora imagina ir enfiando, mesmo que seja a força a princípio, todas essas práticas no dia a dia da vida real? Imagina respirar profundamente todo dia de manhã. Imagina ser grato. Prestar atenção nas flores. Imagina se perdoar e se amar de verdade. Imagina não precisar do retiro.

Enfim, é isso. Não fuja pras montanhas. Nem pra lugar nenhum. Não fuja de você e de tudo que você pode ser. Não fuja do mundo real. Contribua para a construção de um mundo real que comporte a espiritualidade, que comporte o autoconhecimento, que comporte a autocura. Que comporte até o isolamento, que de vez em quando se faz necessário pra gente lidar com os furacões da mente. Da próxima vez que der vontade de fugir ou se entregar a mais alguma filosofia milenar e milenarmente transformada em mais uma balela falocêntrica e patriarcal, vá de encontro ao que te faz querer fugir. Vai correndo. Vai pra colidir. Pega os cacos e reconstrói. Visite a montanha. Ame a montanha. Não fuja pra ela.

Gratidão e pensamento positivo: como sobreviver a quarentena de dentro pra fora

Desde que começou a quarentena, a vida virou um carrossel de emoções. Experienciei diferentes fases do luto, especialmente a negação, e agora que superei a raiva e a tristeza, consigo olhar pro ano com outros olhos. Se de início me apeguei a uma tristeza imensa por tudo que 2020 não seria, nos últimos dias consegui olhar pra tudo que ele é, pra tudo que ele ainda pode ser.

De maneira geral, nem sempre as coisas saem como planejamos. Na minha experiência, ao menos, elas não saem conforme o planejado na maioria das vezes (haha). Me acostumei a repensar, refazer, recriar, recomeçar. Só que existe diferença entre estar acostumado a isso em condições normais, e se pegar completamente impossibilitado por forças maiores. Não achei que veria o mundo passar por algo assim no meu tempo de vida, mas já que estamos aqui, resta aceitar e seguir.

Não quero que o “aceitar e seguir” se confunda de nenhuma forma com ficar parado. Aceitar uma coisa não é socar ela pro fundo da cabeça e continuar vivendo. Aceitar é se colocar de peito aberto. A coisa aconteceu, não tem nada que possamos fazer sobre ela, então juntamos os caquinhos e planejamos tudo de novo, com energia positiva e amor no coração.

Mas como encontrar energia positiva num tempo tão bosta?

É simples, mas não é fácil. É preciso olhar pra dentro. Do que você gosta? Pelo que você é grato? Quem é você quando se fecham as cortinas? É preciso olhar pra fora. Quem é sua rede de apoio? Por quem e pelo que você é grato? Gratidão é o clichê contemporâneo, mas a essa altura da vida superei o desejo de não ser clichê: se é positivo, quem liga? Sejamos gratos. Sejamos muito gratos. Sejamos gratos até o osso. Não pela comparação ao outro (coisa que detesto, aliás, essa de “imagina quem x y ou z”. Cada um sabe onde o calo aperta), mas por voltar o olhar a nós mesmos. A pessoa que eu era mês passado, ano passado, década passada, vive aqui por dentro, na essência, e ao mesmo tempo não existe mais. Sou um ser humano melhor, uma amiga melhor, uma irmã melhor, uma filha melhor. Me encho de alegria quando olho pra vida e penso: daqui a um ano, serei ainda melhor. E foi pensando isso tudo que encontrei a energia necessária para não me afundar. Sou grata pela minha família e amigos. Grata pelo marido maravilhoso que eu tenho. Grata pelas minhas oportunidades e, acima de tudo, grata por esse corpo grande e forte que me enche de possibilidades.

Através do exercício da gratidão a gente se entende melhor, se conhece melhor, e tem mais ferramentas pra passar por períodos ruins. É focar no que é bom e positivo, ao invés de deixar a mente vagar em pensamentos ruins. Eles vão vir e existir, e que bom que sim, porque pra mim a morte da negatividade é a alienação. Um pouquinho de melancolia mantém o pé na realidade rs.

Mas eu tô aqui agradecendo de joelho e continuo me sentindo um lixo, Dand, eu to sendo gratx errado?

Além do esforço pelo foco na gratidão, outra coisa que me ajudou muito nos últimos tempos foi substituir o pensamento autodestrutivo, na hora em que ele vem, por uma opção mais feliz, motivadora e agradável. Por exemplo:

– Eu a um mês atrás: eu desenho mal mesmo, sou péssima nas proporções, é tudo um lixo.
Resultado: fui parando de desenhar
– Eu hoje, quando esse tipo de pensamento vem: quero melhorar minhas habilidades em proporções e perspectiva, então acho que vou desenhar todo dia.
Resultado: continua torto, mas melhora a cada dia e eu amo cada resultado. HAHA

Só não podemos confundir a motivação-positiva-salvadora com a negação, certo? Qual é a diferença? Negação é ignorar a coisa/pensamento ruim e agir como se ela não existisse. Motivação positiva é olhar a coisa de frente, pelo que ela é, e colocar a coisa em termos motivacionais ao invés de derrubacionais (pra derrubar já basta a vida, né? ahaha).

E daí é só pensar positivo que tudo melhora?

Resposta curta: não. rs

Resposta longa: pensar positivo e se manter motivado e cheio de amor nos ajuda a passar bem pelas circunstâncias, mas, dependendo da circunstância, nada vai mudar além de você (o que já me parece grandioso e foda o suficiente). Pensar positivo e me manter grata não faz o Corona ir embora, nem mata a saudade que eu tô da minha mãe, irmãos e amigos. Não faz com que a pandemia acabe, nem com que mais leitos apareçam nos hospitais. Mas me faz passar por isso tudo com muito mais leveza e muito menos culpa, e pode te ajudar também, além de trazer benefícios que vão além desse período difícil.

Se você acha impossível mudar seus padrões de pensamento, eu te digo: dê uma chance. Eu tendo ao pessimismo e ao deprêshow, e nada me ajudou tanto quanto isso. Acredito na autocura, e pra isso precisamos estar alertas, atentos e dispostos. Ninguém pode te ajudar a ser um serumaninho melhor tanto quanto você, porque mesmo a ajuda externa tem limite se a gente não se ajuda. Um passinho de cada vez e chegamos muito mais longe do que acreditávamos ser possível. O segredo é o passinho. Um dia as pernas se fortalecem e a gente sai correndo.